6/30/2009

apeteceu-me

Apeteceu-me vir até aqui, ao belogue, que não foi assim que eu acordei - como dizem os que passam ao estado de vigília - escrever, porque eu, sou uma pessoa que escreve blogue, porque eu sou uma pessoa de princípios e acima de tudo um irmão de seu irmão, um amigo de seu amigo, colega de seu colega, vizinho de seu vizinho, um fã de seu fã, enfim, uma pessoa, bem, de - bem.

Ou não.

Não interessa. No fundo qualquer pessoa sabe que a seguir ao "eu sou uma pessoa que" não vem nada assim "de que muito se aproveite", como dizem as pessoas que não dizem nada que se aproveite. Tipo eu.

Gostas, meu caro único leitor, deste meu novo estilo estilo Miguel Esteves Cardoso (sim, duas vezes estilo)? Comecei agora a ler um livro dele. Eu acho que escrevo menos palavrões, mas o Miguel Esteves Cardoso tem um estatuto em que já pode tudo - e eu acho que merecido. E viram agora como escrevi ao meu estilo pessoal? Com travessões a meio das frases! É muito meu! É porque o elogio é a sério.
No entanto, distorcendo, escrever À Miguel Esteves Cardoso é um desfaio suficientemente desinteressante para eu tentar. A escrita de Miguel Esteves Cardoso, não acho desinteressante. A minha á que é, ora observe-se:

Capuchinho Vermelho

Eu estava no quarto a brincar. Uma brincadeira sem fim, como todas as crianças têm, acreditando-se presas naquela eternidade que é o tempo a passar, sem passar. A minha Mãe chamou-me. Foda-se. Tinha feito bolos. Dos que eu não gostava. Não eram para mim. Eram para a minha Avozinha, que estava doente.

Foi uma doença. Que nunca aconteceu, mas em que ela acreditou, como se fosse hipocondríaca. Mas nem isso era. Estava presa na velhice, como as velhas estão.

À espera da hora a que a mulher-a-dias devia chegar, mas não chega. Só para tomar nota que não chegou a horas. Sem nunca dizer nada. Refilar é para os novos. Um luxo dos que têm quem dependa deles. A vida é uma puta com o passar do tempo.

À espera da hora do almoço. E do lanche. E do jantar.

À espera do marido. Que morreu.

À espera de morrer, sem ver a hora.

A minha Mãe deu-me os bolos. Dos que eu não gostava. Que cheiro horrível. E tive de ir. O tempo embora parecesse não passar, era curto.

Quando dei por mim estava no meio da floresta. Nada. Ninguém. Uma clareira de Bétulas, onde vivia o cavaleiro da Dinamarca. Viveu. "Foda-se", pensei "Já me perdi". Segui em frente, em direcção a uns pinheiros, ou eucaliptos. Era indiferente. Até podiam ser ervas daninhas.

Apareceu um lobo. Alto. Bonito e esguio. Falava. Perguntou-me quem eu era, sempre com aquela autoridade dos guardas-florestais. Coisa que ele não era. "Onde vais, menina?". Onde é que eu ia? Com aqueles bolos que eu mal podia com o cheiro, não ia fazer um piquenique de certeza, mas ele, pensei na altura, não sabia e eu disse que ia a casa da minha Avó. Ele perguntou onde era. Mostrei-lhe o croqui. Ele fingiu que percebeu. Aproveitei, pedi-lhe orientações para o sítio. Eu estava perdida na clareira de Bétulas, onde Sophia de Mello Breyner Andresen colocara a casa de um Cavaleiro Dinamarquês. Ajudou-me com a expressão de quem tenta transmitir a convicção com que os polícias falam da lei, ou dos caminhos, ou do que é um agente de autoridade, como se o soubessem, mesmo sabendo que não os sabem, mas com medo de o admitir a si próprios, de ferirem a sua virilidade. Agradeci.

Cheguei a casa da minha Avó. Deitada na cama. Estava diferente. Estava feia. Peluda. Alta e esguia.

Não parecia estar à espera do que as velhas esperam.

Parecia estar à espera de bolos maus, dos que ela gosta. Como as bananas que ninguém come e que ficam maduras de mais, que lá em casa ficam para a minha Mãe. O instinto maternal faz gostar de fruta podre. E de muito mais coisas podres.

Não interessa agora.

Ela gosta, mas como velha que é, nunca espera nada. Não espera nada dos novos e úteis. Talvez nem mesmo a eutanásia. Sobrevive na dor. A dor de ter vivido feliz. Uma dor que é certa para todos os que chegam a velhos, mas que não é esta certeza que a conforta. Aliàs, não deseja aquela dor a ninguém. Só não quer incomodar. Mas incomoda. E ela sente-o. E para disfarçar isto é que a minha Mãe lhe manda bolinhos. Dos que ninguém gosta. Só ela. Dos que são feitos quase com desprezo, mas só para ela. Não dão muito trabalho. Eu que me foda e faça o favor de os vir trazer e ver este espectáculo.

Estava com os olhos grandes.

Era para ver melhor.

As orelhas grandes.

Para ouvir melhor. Os mexericos que ninguém quer saber. Só ela, para se entreter com alguma coisa que só a incomode a ela. Por que é que depois vai contar a quem não quer saber? Não sei. Ela também não.

A boca grande.

Para me comer.

Afinal tinha-me enganado. Não era a minha Avó, era o lobo. Se calhar enganei-me na casa. Como a criança que chega, olha à volta e tem de olhar outra vez, embasbacada com o Mundo. Gira e cai para tràs. É mesmo assim. É aprender. Foda-se, mas dói. Não foram vocês que acabaram de bater com o alto do toutiço.

Não, não me tinha enganado. Era mesmo o lobo disfarçado de Avó. Fodeu-se. A ganância dele foi mais pequena do que a do polícia que o quis seguir. Para fazer cumprir a lei. Uma lei em que ele não acredita. Ninguém acredita. Mas todos têm inveja de quem não a cumpre. Como todos temos inveja do Fausto de Goethe, que conseguiu enganar o diabo. Por trágico que o desfecho tenha sido.

O lobo acabou por morrer. Sem chegar a velho. A Avó sobreviveu. Condenada a viver. E a pensar na sorte do lobo, que morreu. Aqui presa mais anos. Que não acabam. Que não passam. Que quando tiverem passado, foram num instante.